Eu ainda estava sonolenta, afinal eram 07h29min da manhã e eu não
acordo antes das 10, não por preguiça, eu durmo muito tarde.
E aquela voz me sentenciava ao sofrimento, ao desespero e fazia com
que um... choque percorresse a boca do meu estômago e se estendesse pelo peito.
Mas o coração não acelerou. Tomo remédios para evitar sobressaltos e diminuir a
adrenalina.
Mas também, claro, eu poderia estar sonhando. Quantas vezes eu
sonhei que já havia acordada, que estava chegando ao escritório, até descobrir,
num sobressalto, que havia perdido a hora do trabalho.
Ah, claro, talvez estivesse acontecendo algo surreal, afinal,
passava um pouco das três da madrugada quando eu o vi chegando. Não apenas
escutei. Eu o vi chegando, principalmente que eu estava dormindo na
sala, num colchão de solteiro e ainda não havia pegado no sono. Na verdade, ele
chegou pouco depois que eu havia acabado de desligar a televisão. Abriu a porta
sem fazer qualquer ruído, entrou, fechou de-va-ga-ri-nho, auxiliando a parte de
baixo com a bunda, pois a porta estava meio emperrada. Eu abri os olhos, e o vi
passando por mim e indo direto para o quarto.
Como no dia anterior, eu havia brigado com ele por estar sempre
chegando de madrugada, resolvi fingir que estava dormindo pra não precisar
chamar a atenção dele pelo horário.
Pensei na depressão pela qual ele passava por causa da morte de
minha irmã, mãe dele, que havia nos deixado no domingo de Páscoa e pensei no
quanto ele estava sofrendo, já que ao amanhecer, faria cinco meses da morte da Nilce.
Pegava-o, constantemente, chorando em desespero, no cantinho do
quarto onde dormia, sentado na beiradinha da cama.
Remédios para dormir... ele tomava qualquer um que encontrasse pela
frente. Quando não havia mais nenhum, ele se enchia com uns quatro a cinco
comprimidos de Dramim para conseguir cair no sono.
Eu tentei que ele se desabafasse comigo. Minha filha Natália
conversou muito com ele, meu genro Fábio também. Tentávamos deixá-lo o mais à
vontade possível, tentávamos fazer até com que ele falasse, pois era muito
introspectivo. Era capaz de ficar um dia inteiro sem pronunciar uma palavra
sequer, e até sem sorrir. Quando se dava ao “trabalho” de falar alguma coisa,
era preciso pedir que repetisse mais de uma vez para que pudéssemos entender...
Mas fazia um café que era uma de-lí-cia! Como numa certa propaganda: “Êita
cafezinho bão!”
Mas naquele momento alguém me acordava perguntando pela Dona Nilce.
A Dona Nilce faleceu, vai fazer cinco meses amanhã – eu disse.
Então aquela voz me perguntou meu nome e o que eu era da Dona
Nilce... Quando eu respondi que era irmã dela, ele então perguntou: “A senhora,
então, é tia do Pedro Constantinos Tho... mo... poulos... Filho? Ele se
engasgara ao pronunciar o sobrenome do meu sobrinho, nome grego, “Thomopoulos”.
Logo depois ele perguntou: “Quem é Rondineli Jorge Lima?”
Nessa altura eu já “sabia”: o Pedro havia sido preso, ou havia
sofrido algum acidente grave... talvez um tiro, uma bala perdida...
Rondineli é irmão do Pedro, mas mora no Rio – eu falei – mas como o
senhor chegou a esses nomes? “Pelo cadastro da polícia civil”.
Então, agora eu tinha “certeza”. Pedro estava mal no hospital ou se
envolvera em alguma briga e pediu ao policial que ligasse pra minha casa... mas
ele não ia pedir para ligar para a Dona Nilce... isso então podia significar
que...
“É que o corpo dele foi encontrado no Bairro Solimões,
próximo ao sanatório...”
Eu me senti sem chão. O corpo dele. O corpo dele. O corpo dele...
Moço, o senhor disse “corpo dele”?!? Quer dizer que...
“Ele veio a óbito.”
E eu não podia me aprofundar nas perguntas, afinal, a minha irmã
Nilva (deficiente mental), apaixonada pelo “Didigo” – ela só o chamava de
Rodrigo – estava acordada, no quarto ao lado.
Morreu de quê, moço? Tiro, atropelamento?...
“Isso a senhora só vai poder saber no IML.”
No IML! Meu pensamento gritava. IML... Instituto Médico Legal...
cadáver... autopsia... Meu sobrinho está MORTO!!!
Desliguei o telefone, que tocou quase de imediato... alguém
querendo saber se tinha plano funerário... se podia deixar um telefone para no
caso de eu precisar de uma funerária... falou de vantagens no preço, na
“recolha” do cadáver!... CA-DÁ-VER! Esse era agora o nome do meu sobrinho.
Mas eu tinha visto quando ele chegou de madrugada, pouco depois das
três...
Agora eu precisava falar com minha filha
Natália que havia saído para a faculdade. Meu genro também estava trabalhando.
Minha irmã Nilsa, minha mãe em Barra do Piraí/RJ. O irmão Rodinei que já devia
estar no trabalho.
E a Nilva, ali no quarto? Ela compreende tudo que se fala... eu
precisava fazer as ligações longe dela. Peguei o telefone sem fio e fui até o
portão para, só então, perceber que eu estava seminua.
Primeira ligação que fiz foi pra minha filha. Pedi que viesse pra
casa porque eu estava passando mal. Segurei o choro, controlei a respiração.
Liguei então para o meu genro e disse: “Vem pra casa! A Polícia Civil ligou
aqui e disse que encontraram o corpo do Pedro.”
A “ficha” não havia caído por completo. Ele, o Pedro, havia chegado
em casa naquela quinta-feira de madrugada. Dormiu muito, levantou-se por volta
de uma da tarde. Estava mancando, como se tivesse caído ou levado uma surra.
Pedi a Natália que passasse dois comprimidos de diclofenaco de potássio pra
ele. Ele se deitou mais um pouco e quando acordou estava andando melhor. Tomou
um banho, tomou café e se sentou no sofá.
A Natália estava fazendo cachorro-quente quando ele disse que ia
sair. Ela insistiu muito pra que ele ficasse, em vão, então pediu que não demorasse
para poder comer o cachorro-quente.
Quando eu saí do banho, ele já havia ido pra rua. Naquele final
de tarde de quinta-feira, dia 18/09/2014.
Aquela ligação na manhã de sexta-feira, 19/09 me dava conta de que
não havia mais nada que eu pudesse fazer que não fosse ir ao IML.
Precisei ligar para o irmão dele, Rondinei, que havia acabado de
chegar ao trabalho. A reação dele foi de desespero... O PEDRO, tia???
Ligação para Barra do Piraí. Liguei para o sobrinho Wellington que
estava no trabalho (maquinista) e a reação foi de susto, de incredulidade. Pedi
que avisasse à mãe dele, minha irmã Nilsa, que iria até o Bairro Belvedere
levar a notícia para a minha mãe (avó do Pedro) e para o irmão dele mais velho.
Não sei o que as pessoas carregam no coração. Não sei como
conseguem sentir ódio. Quer saber? Eu nem sei como é o ódio. Já senti muita
raiva de muita gente, mas ódio... Ódio é um luxo a que eu não posso me
permitir.
A vida já está tão desgraçada, tão violenta, tão injusta... E as
pessoas ainda encontram tempo para sentir ódio! Mas por que estou me referindo
ao ódio? Simples: quando minha irmã Nilsa foi ao Belvedere levar a triste
notícia, de um jovem de 24 anos tirado do convívio da gente por meio de cinco
tiros na cabeça, o irmão mais velho, Rondineli pulou, deu vivas, bateu
palmas e festejou muito. Segundo me disseram, ele ainda afirmou que só não
comprava bala e algodão doce para todas as crianças do bairro, porque estava
sem dinheiro.
Sei que nunca mais a minha vida será a mesma. Não consigo dormir, mesmo
a poder de remédios, porque ao me deitar, todos os acontecimentos daquele dia,
em especial a voz do policial “é que o corpo dele foi encontrado” não saem da
minha mente. E eu revivo o telefonema, o IML (durante o dia todo aguardando a
liberação d corpo) com o vídeo apontando os nomes dos “cadáveres”. E eu devo
ter lido, sei lá quantas vezes, o nome de Pedro Constantinos Thomopoulos
Filho. Exame iniciado (NÃO). Previsão de liberação (13h), mas só
liberaram mesmo depois das 18 horas.
Quando peguei o Boletim de Ocorrência, notei que, pelo horário que
a polícia encontrou o corpo, naquela hora que ele chegou em casa vagarosamente,
na verdade ele já estava morto.